O Baba gosta sempre de me mostrar as suas criações, desde as gastronómicas (que bem que me soube o pequeno-almoço que me ofereceu para eu poder apreciar algumas iguarias da cozinha síria!), ao artesanato, passando pela jardinagem e a agricultura.
Está em Portugal há quase nove meses e com ele vieram a esposa, dois filhos, a nora e três netos e o objetivo das minhas visitas é ajudar na aprendizagem do Português.
Ultimamente, tenho podido apreciar desenhos, ilustrações, pinturas, retratos... artes plásticas que saem das suas mãos com grande naturalidade. Isto apesar das dores nas mãos que o costumam massacrar.
Na sexta-feira passada, ofereceu-me esta pintura de uma árvore florida. Gostei logo da simplicidade das formas e do calor das cores nascidos num papel velho e inapropriado para o trabalho.
Fiquei a pensar que redutos tem a alma humana para conseguir aprisionar os medos, os traumas, as dores, e deixar que à sua volta os campos floresçam de esperança e vida.
Será a arte o grito contra a barbárie desumana?
Ou o apelo ao entendimento através de verdades inquestionáveis como a cadência das estações?
Talvez as flores que perfumam este desenho tenham sido pinceladas com sangue humano, mas não deixam de me interpelar e transmitir uma mensagem.
Só o Baba o poderá dizer. Antes de falarmos uma língua comum, vamo-nos expressando através de linguagens universais como as histórias, a pintura, a postura corporal, os gestos, a música e a comunicação do coração.
com a Vida às costas
Impressões, retratos e factos presos à condição de Refugiado... Histórias de gente em movimento: fugindo do terror, sonhando com uma vida melhor, perseguindo o futuro, num mundo global
quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017
segunda-feira, 23 de janeiro de 2017
«Trabalho das 8h às 16h. Tenho saudades de ser feliz.»
Mais de 187 mil crianças em idade escolar sírias refugiadas no Líbano não vão à escola.
Este testemunho faz parte de um novo documentário interativo da UNICEF chamado #imagineaschool. Há outros também impressionantes...
Jomaa, 14 anos, fugiu da Síria com os sete irmãos há quatro anos. Ganha dois dólares americanos por 12 horas de trabalho. «Esqueci como escrever e ler.»
Mohamad tem 15 anos e trabalha para sustentar a família: «Canso-me muito. Trabalho das 8h às 16h. Tenho saudades de ser feliz.»
Ao ouvi-los não consigo deixar de pensar na sorte que temos, mas ao mesmo tempo como a vida é tão dura para tanta gente... Daí ao passo «o que fazer?» vai um piscar de olhos...
segunda-feira, 12 de dezembro de 2016
Fogo no Mar
- Por favor, ajudem-nos, estamos a afundar!
- Quantas pessoas?
- 250! Há muitas mulheres e crianças. Ajudem-nos!
- Qual é a vossa posição?
- Ajudem-nos! Socorro!
- Por favor, mantenha a calma e diga-me qual é a vossa posição.
Perde-se a ligação, em vão um helicóptero tenta perscrutar na noite sinais da embarcação em apuros, no dia seguinte a rádio local de Lampedusa informa que pelo menos 250 pessoas perderam a vida na tentativa de alcançarem a ilha.
É desta forma desconcertante que começa o filme "Fogo no Mar", da autoria de Gianfranco Rosi, realizador que viveu na ilha durante mais de um ano captando as imagens que estiveram na base deste documentário. No final, não conseguiu abandonar Lampedusa e, contrariamente aos seus planos iniciais, não conseguiu fazer a edição do filme, por não estar preparado para voltar a reviver as emoções por trás das imagens.
Com arte e sentido de humor, o filme leva-nos a conhecer as rotinas de quem vive na ilha, tendo como personagem principal um rapazinho de 12 anos chamado Samuele; mostra-nos os olhares de fogo de quem é resgatado do naufrágio; apresenta-nos quem presta assistência a estas pessoas.
Emerge à tona das águas límpidas de Lampedusa uma certeza: quem enfrenta a morte daquela maneira só pode estar a fugir a algo ainda pior. Guerras, tráfico, fome, sede, exploração, miséria.
Assistimos à exploração submarina de um mergulhador local, talvez para recolher objetos dos náufragos, quem sabe para construir um museu ou para fazer um cemitério de sonhos. Aqueles mares, os nossos mares, estão salgados pelo desespero e obscurecidos pela falta de ação concertada.
Assistindo aos vários procedimentos legais que os migrantes são sujeitos, ouvimos os comentários dos guardas que frisam o cheiro a gasóleo dos náufragos. No final do filme percebemos porquê: os barcos em que navegam têm de ser reabastecidos várias vezes durante o trajeto e nesse processo muito combustível cai ao chão e junta-se à água que já cobre o piso. As pessoas ficam molhadas com essa mistura e muitas delas sofrem queimaduras graves. Mais chocante do que isso foi vermos o resgate de um barco em cujo porão cerca de 50 pessoas morreram ou estavam perto disso devido ao calor e consequente falta de oxigénio. Cada uma delas pagara 800 dólares americanos por aquela passagem...
É um filme com pormenores de ternura, retratando o dia a dia de Samuele, com as diabruras próprias da idade. Mas é sobretudo um abanão. Um confronto com um mundo semeado de desigualdades que nem barreiras naturais como o mar conseguem estancar.
Só no ano de 2013, 14.753 imigrantes -três vezes mais do que a população da ilha - desembarcaram em Lampedusa, causando um impacto tremendo na dinâmica social local. Depois do terrível naufrágio de 3 de outubro de 2013, onde 366 pessoas perderam a vida, desencadeou-se a operação Mare Nostrum, que tem permitido salvar a vida a muitos migrantes e refugiados: só num ano foram resgatadas do mar 60.000 pessoas.
Ver este filme é permitir que a realidade não nos seja indiferente, é transformar os números em pessoas, o choque em apelo à ação!
Imagem: Amnistia Internacional
- Quantas pessoas?
- 250! Há muitas mulheres e crianças. Ajudem-nos!
- Qual é a vossa posição?
- Ajudem-nos! Socorro!
- Por favor, mantenha a calma e diga-me qual é a vossa posição.
Perde-se a ligação, em vão um helicóptero tenta perscrutar na noite sinais da embarcação em apuros, no dia seguinte a rádio local de Lampedusa informa que pelo menos 250 pessoas perderam a vida na tentativa de alcançarem a ilha.
É desta forma desconcertante que começa o filme "Fogo no Mar", da autoria de Gianfranco Rosi, realizador que viveu na ilha durante mais de um ano captando as imagens que estiveram na base deste documentário. No final, não conseguiu abandonar Lampedusa e, contrariamente aos seus planos iniciais, não conseguiu fazer a edição do filme, por não estar preparado para voltar a reviver as emoções por trás das imagens.
Com arte e sentido de humor, o filme leva-nos a conhecer as rotinas de quem vive na ilha, tendo como personagem principal um rapazinho de 12 anos chamado Samuele; mostra-nos os olhares de fogo de quem é resgatado do naufrágio; apresenta-nos quem presta assistência a estas pessoas.
Emerge à tona das águas límpidas de Lampedusa uma certeza: quem enfrenta a morte daquela maneira só pode estar a fugir a algo ainda pior. Guerras, tráfico, fome, sede, exploração, miséria.
Assistimos à exploração submarina de um mergulhador local, talvez para recolher objetos dos náufragos, quem sabe para construir um museu ou para fazer um cemitério de sonhos. Aqueles mares, os nossos mares, estão salgados pelo desespero e obscurecidos pela falta de ação concertada.
Assistindo aos vários procedimentos legais que os migrantes são sujeitos, ouvimos os comentários dos guardas que frisam o cheiro a gasóleo dos náufragos. No final do filme percebemos porquê: os barcos em que navegam têm de ser reabastecidos várias vezes durante o trajeto e nesse processo muito combustível cai ao chão e junta-se à água que já cobre o piso. As pessoas ficam molhadas com essa mistura e muitas delas sofrem queimaduras graves. Mais chocante do que isso foi vermos o resgate de um barco em cujo porão cerca de 50 pessoas morreram ou estavam perto disso devido ao calor e consequente falta de oxigénio. Cada uma delas pagara 800 dólares americanos por aquela passagem...
É um filme com pormenores de ternura, retratando o dia a dia de Samuele, com as diabruras próprias da idade. Mas é sobretudo um abanão. Um confronto com um mundo semeado de desigualdades que nem barreiras naturais como o mar conseguem estancar.
Só no ano de 2013, 14.753 imigrantes -três vezes mais do que a população da ilha - desembarcaram em Lampedusa, causando um impacto tremendo na dinâmica social local. Depois do terrível naufrágio de 3 de outubro de 2013, onde 366 pessoas perderam a vida, desencadeou-se a operação Mare Nostrum, que tem permitido salvar a vida a muitos migrantes e refugiados: só num ano foram resgatadas do mar 60.000 pessoas.
Ver este filme é permitir que a realidade não nos seja indiferente, é transformar os números em pessoas, o choque em apelo à ação!
Imagem: Amnistia Internacional
sexta-feira, 25 de novembro de 2016
História de um Colete, por Sofia Mexia Alves
Partilhamos aqui a história de um colete, da autoria da Sofia Mexia Alves:
Diário de Bordo
Diário de Bordo
Lesbos, 22 de Agosto de 2016
(…)
estava entusiasmada quando cheguei ao campo de Kara Tepe, tinha preparado uma sessão sobre liderança para o Youth Group. Ia contente e de sorriso rasgado.
estava entusiasmada quando cheguei ao campo de Kara Tepe, tinha preparado uma sessão sobre liderança para o Youth Group. Ia contente e de sorriso rasgado.
Chego à entrada do campo e vejo o Salam e o Ahmed de mochila às costas, com o resto da família. O Salam vê-me e chama-me, com um olhar desamparado diz-me que se vão embora, vão para Atenas.
Fico também eu desamparada. Pela incerteza do futuro.
O Salam, tão querido, estava em todos os Creative Minds, sempre pronto a participar, conversar, ajudar. O Ahmed é aquele pestinha maravilhoso, irrequieto, sempre a testar os nossos limites… impossível não gostar dele.
Demos abraços apertados, muitos beijinhos, dissemos “i love you” imensas vezes.
O olhar do Salam continuava desamparado.
E eu tinha de seguir e ir para o Youth Group.
Pelo caminho ia engolindo as lágrimas.
Dias depois, a Inês Viterbo (voluntária na Linha da Frente, em Atenas) envia-nos uma fotografia e uma mensagem:
“(…) Vieram ter comigo a correr hoje, pouco depois de eu ter chegado ao campo de Eleonas. Reconheceram o meu colete.
Chegaram cá há quatro dias, vindos de Lesbos.
Senti muito, através deles, uma enorme ternura por cada um de vocês. Tive, sobretudo, a percepção de que se sentiram muito amados e protegidos aí. Senti que o Salam viu neste mesmo colete um sinal de esperança, um lugar comum de Amor.”
Não importa se é a Inês, a Sofia ou o Tiago quem o veste.
Vestir este colete é assumir um compromisso de serviço, de humanidade.
Vestir este colete é ser-se humilde, é tomarmos consciência da nossa pequenez. E do nosso poder.
É sermos tomados por esta missão de amor.
*
Plataforma de Apoio aos Refugiados
Texto e imagem: Sofia Mexia Alves, in: https://escolhadesofia.wordpress.com/2016/11/23/historia-de-um-colete/
quarta-feira, 9 de novembro de 2016
A equipa da Torre di Canicarao |
A SUL
Uns saem das suas casas a fugir da guerra, da perseguição,
da miséria, da tortura, da fome e conseguem sobreviver; outros saem das suas
casas para ir ter com estas pessoas migrantes e refugiadas e mostrar-lhes que
se importam com elas, com as suas vidas, e que há um caminho a percorrer
juntos. Recentemente, estive na Sicília numa missão internacional de
voluntariado com homens refugiados.
Buongiorno! Tutto a posto?
As histórias que vos vou contar passaram-se na província de
Ragusa. Mais concretamente, num Centro de Acolhimento a Refugiados, que em
Itália é chamado de Sistema de Proteção para Requerentes de Asilo e Refugiados
(SPRAR), no meio do campo, a uns 4kms da cidade de Comiso, na antiga Torre di Canicarao. Estive a trabalhar
como voluntária no projeto At The Frontiers (ATF) em setembro passado, durante
três semanas. Vou falar-vos de pessoas refugiadas que conheci e optei por
dar-lhes aqui nomes fictícios por uma questão de proteção da sua integridade.
Buongiorno!
Buongiorno! Come stai? Bene? Bene! E tu? Si, tutto a posto![1]
As nossas manhãs na Torre di Canicarao
começavam assim, em italiano, na língua da terra onde estávamos, embora ao
longo do dia, para nos compreendermos melhor, fossemos falando vários idiomas.
Cada dia começava com apertos de mão sem pressa, aliás, à medida que nos íamos
conhecendo, cada vez mais demorados à boa maneira africana. Guiné-Conacri,
Síria, Somália, Nigéria, Gâmbia, Egipto, Senegal, Marrocos, Burkina Faso,
Guiné-Bissau, Chade. 36 homens, a maioria entre os 18 e os 25 anos de idade,
sobreviventes à travessia do Canal da Sicília, até ao porto de Pozzalo, a 40
kms de Ragusa. Itália. Seis profissionais e assistentes sociais italianos da
Fondazione San Giovanni Battista, uma entidade responsável por vários centros
de acolhimento em Ragusa. Portugal e Espanha. Três elementos da equipa
internacional de voluntários ATF – o Pedro, a Begoña e eu.
Passávamos os dias todos juntos numa casa no meio do campo,
na envolvente semi-árida da cidade de Comiso, rodeada de colinas em tons ocre
com casas de pedra, rebanhos, oliveiras e catos que se chamam figueiras da
índia.
Equipa At The Frontiers, o 4º turno. Verão 2016. |
No final de cada dia, nós, os três voluntários de Canicarao,
regressávamos à cidade de Ragusa, à casa cedida pelos jesuítas para o projeto
ATF. Chegávamos nós e chegavam os outros voluntários que estavam também a
trabalhar por pequenas equipas noutros centros de acolhimento da Fondazioni San
Giovanni Battista. Embora a maior parte dos centros desta fundação acolha
homens, existem ainda um centro para mulheres e outro para famílias. Ao todo, éramos
14 voluntários naquele que foi o 4º turno do projeto ATF no verão 2016.
Entre tarefas domésticas e o jantar, íamos conversando sobre
o dia, partilhando novidades e preocupações. Todos à mesa éramos catorze.
Julien, Helène, Teresa, Maria, Elena, Lucía, Begoña, Hanna, Flavio, Sophia,
Cristina, Pedro, a Madalena e eu. Todos também de países diferentes. França,
Espanha, Alemanha, Itália, Inglaterra e Portugal. Em comum, temos o facto de
termos dado o passo de sermos parte da resposta no apoio às pessoas migrantes e
refugiadas.
Apanha da Alfarroba |
260 quilos de
Alfarroba
Estamos a sul, na Sicília, e os dias de setembro são quentes
e por isso pesam. Mas, mais do que o clima, pesa o tempo. Pesa o tempo da longa
espera pela proteção internacional que cada um destes homens enfrenta. Aqui não
é fácil estar-se motivado.
Diferentes culturas juntas numa só casa. Ainda não estive em
nenhum destes países, mas conheci cada um deles. Importo-me com cada um dos
rapazes, com as suas vidas e quero que cada um possa construir uma vida melhor.
Alguns deles conseguiram trabalhos esporádicos ou temporários, por exemplo de
serralharia, a aspirar carros numa oficina de mecânica ou na apanha da fruta.
Um deles foi treinador de futebol de iniciados e agora está responsável pelo
campo de futebol de Comiso.
Andiamo al jardino a
fare una ativitá veramente importante! Oggi
prendiamo Carruba insieme![2]
O meu italiano é muito limitado, mas sei que quando dizia frases como estas com
entusiasmo, elas tinham impacto e até faziam rir. Precisamos todos de rir.
Vamos fazer uma atividade diferente: apanhar alfarroba no terreno que circunda
a casa. No caminho até ao jardim misturamos palavras em alguns idiomas, como já
se torna habitual. Italiano, inglês, árabe, francês, fular, algumas das línguas
que se falam ali por casa. Por vezes, não é fácil expressarmo-nos e
conseguirmos passar a mensagem. O Tarik (Marrocos) e o Mahamat (Chade) ajudam e
fazem muitas vezes a tradução para árabe. O Pedro avança com uns sacos de
plástico XXL pretos. O Mahamat, o Tarik, o Horus (Egipto), o Omar (Síria), o
Abdal Salam (Somália), o Jonas e o David (Gâmbia), e o Moussa (Senegal)
acompanham-no.
O dia está nublado. Não podia ser melhor para apanharmos a carruba, que é como se diz alfarroba em
italiano. Os rapazes arranjaram umas varas para agitar os ramos e fizeram cair
as vagens na terra. Resultou, mas o Omar quis subir às alfarrobeiras para
tornar mais rápido o processo. Parecia que choviam alfarrobas! Algumas
caiam-nos em cima e riamos uns com os outros. A atividade levou-nos o dia
inteiro. Apanhámos 260 quilos.
Carruba Pranzo Party |
Carruba Pranzo Party
Antes, o Pedro, a Begoña e eu acordámos com os profissionais
do centro e com os rapazes que iriamos vender a colheita e repartir o dinheiro
por quem tivesse trabalhado. Assim foi. Recebemos 65 euros. Reunimos todos os
envolvidos e perguntámos o que queriam fazer com este valor, que era deles.
Responderam que era para nós decidirmos. Insistimos e devolvemos a mesma
pergunta. Depois de discutirem algumas ideias, decidiram que 15 euros seriam
para uma pequena festa para todos na Torre di Canicarao e o restante seria
dividido pelos que trabalharam. Para nós, esta iniciativa de eles quererem
investir parte do dinheiro ganho para fazer uma festa para todos, indicou-nos
claramente que o ambiente que cultivam entre eles é construtivo. Nesta ação e
nesta atitude, explicaram-nos como a paz se pode construir em contextos
difíceis. Juntámos mais um tanto e fomos ao supermercado comprar sumos,
salgadinhos e gelados. Fizemos um almoço com todos e diferente do habitual,
mais animado. Chamámos-lhe a Carruba
Pranzo Party[3].
À volta de uma mesa muito comprida reuníamo-nos dia após
dia, como fazemos com os nossos amigos ou com a nossa família. Igual. Sabíamos
que alguns deles são muçulmanos e à uma hora da tarde rezam juntos, por isso
esperávamos mais uns minutos por eles para almoçarmos todos. Dia após dia,
fomo-nos conhecendo, trabalhando em conjunto e os dias foram ganhando sentido.
O Jardim das Plantas Aromáticas |
É por isso que
estamos aqui
Depois da apanha da Alfarroba e da Carruba Pranzo Party, propusemos aos rapazes fazermos outras
atividades. Arranjarmos o jardim das plantas aromáticas foi uma delas. O Jonas, que adora mecânica e agricultura,
guiou-nos com a sua experiência e entusiasmo. Plantámos
manjericão, hortelã, sálvia e orégãos. Semeámos alfaces e rabanetes. No jardim,
já tinham salsa, alecrim, alfazema, cebolas. A boa disposição do Jonas
aumentava à medida que remexia a terra e nos explicava como fazer. Já sabíamos
que passava noites em claro. Muitas preocupações. O jardim das plantas
aromáticas parecia outro e ele também. Dá gosto ver os resultados! O Jonas
disse-me, enquanto isso, que pede todos os dias a Deus um terreno para
cultivar. ‘Sim, vais ter’, disse-lhe eu. Depois pensei: ‘quem sou eu para lhe
dizer que sim?’. E repensei: ‘claro que sim, se ele quiser muito um pedaço de
terra, vai fazer por isso e criar mais possibilidades para que aconteça. É
possível’. Continuámos a arranjar o jardim.
A Begoña, eu e alguns deles fizemos legendas para as
plantas. Traduzimos os nomes das plantas para os quatro idiomas mais falados
ali no Centro: italiano, inglês, francês e árabe. Para as legendas ficarem mais
completas, o Pedro, o Jonas, o Tarik e o Horus foram para o jardim, fizeram os
desenhos das plantas e pintaram-nos com aguarelas. As atividades em conjunto
ajudam-nos a estar no presente. O Jonas tinha insónias todas as noites.
Contou-me que deixou a Gâmbia porque presenciou o assassinato de uma pessoa por
militares do governo. Agora está longe da família, da mãe e dos irmãos, dos amigos.
Numa outra conversa mais à frente, estávamos a dizer que a vida não é fácil.
Ele acrescentou que a deles é muito difícil. Eu imediatamente respondi que é
por isso que estamos aqui. E ficámos em silêncio.
Comiso, na província de Ragusa. |
Tenho de ir ao
Terreno
Conversas simples do dia a dia davam ritmo à amizade que
fomos construindo. Nada de ‘conversas-inquérito’ com aquela curiosidade mórbida
em que às vezes se cai. Sabíamos que os rapazes já estavam ali há muitos meses,
pelo menos a grande maioria, e que já teriam contado muitas vezes partes das
histórias que os acompanham. O Pedro, a Begoña e eu, embora não tivéssemos
falado sobre isso, estivemos sempre alinhados: não fazíamos perguntas que
direcionassem as nossas conversas para que eles recordassem momentos de
sofrimento. O nosso foco estava neles. No aqui e no agora, na ação e neles. O
grande desafio foi estarmos com os rapazes neste tempo de espera. Lado a lado.
A nossa presença mostra que nos importamos com eles, assim como as atividades
que desenvolvemos juntos, a nossa energia, as conversas, a participação nas
aulas e os jogos.
Porém, há histórias que conheci e não me saem da memória.
Num dos dias recebemos a visita do Kévin da Guiné-Conacri, que antes de lhe ser
reconhecido o estatuto de refugiado, tinha vivido ali no centro. O Kévin foi
escravo durante 5 anos na Líbia, conseguiu fugir e chegar à Sicília. Agora
trabalha numa ONG em Ragusa como facilitador e tradutor num projeto com outros
requerentes de proteção internacional. Outro dos rapazes saiu do seu país, a
Gâmbia, porque presenciou um assassinato praticado pelos militares e temeu pela
vida. Já o Omar, que fugiu com os irmãos da Síria, contava-nos que na cidade
dele, As-Suwayda, existem diferentes grupos terroristas que atacam as pessoas e
instalam um clima de violência constante, diário. O Omar quer trabalhar e
ganhar dinheiro para poder ajudar os pais que lá ficaram. São tantas as
histórias de superação quantas as pessoas que ali chegaram.
Caminho entre Comiso e a Torre di Canicarao. |
Antes de partir para Ragusa, lembro-me de ter dito a um
amigo meu que tinha de ir ao terreno. Não aguentava mais. Tinha que agir e
conhecer de perto esta realidade que também me diz respeito. Não propriamente
para conhecer as histórias, mas as pessoas. Para olhar para elas, estar ao lado
delas e para que, pelo menos algumas, percebessem que me importo, que nós
europeus nos importamos. Mas, acima de tudo, para eu compreender melhor o que
posso fazer por elas na minha cidade e no meu país, agora que regressei.
Nestes dias aprendi a dar um ‘passou bem’ à maneira
africana. Mão na mão. O olhar e o aperto de mão são dados sem pressa. No final
do ‘passou bem’ quando largamos as mãos, damos um estalinho com os dedos.
Guardo na memória, e no coração, cada um deles, a minha equipa At The Frontiers
e a enorme solidariedade do povo italiano, todos incansáveis.
[1] Bom dia!
Bom dia! Comos estás? Bem? Bem! E tu? Sim, tudo bem!
[2] (Andiamo
al giardino per fare un'attività veramente importante! Oggi prenderemo carruba
insieme!) Vamos até ao Jardim para fazermos uma atividade realmente
importante! Hoje nós vamos apanhar alfarrobas juntos!
[3] Festa
Almoço da Alfarroba
sábado, 29 de outubro de 2016
O desafio do Papa Francisco
O Papa Francisco lançou o desafio...
Por cá algumas comunidades já o puseram em prática... Mas a capacidade de acolhimento está quase a ficar esgotada.Será que não conseguimos dar este presente ao Papa Francisco e até dia 13 de maio, quando ele estiver connosco, termos uma família de refugiados em cada paróquia ou comunidade?
O que podes tu fazer para que isto aconteça junto de ti?
quinta-feira, 13 de outubro de 2016
Onde é que fica o Quirguistão?
Enquanto esperamos pelas nossas filhas que estão na aula de
natação, ela vai-me desfiando a sua história. Um olho em mim e o outro no mais
novo, pelo que a conversa foi interrompida várias vezes enquanto a Mukhae corria
atrás dele.
Portugal era talvez o último destino em que a Mukhae se imaginava
a viver. Com 27 anos de idade, tinha-se formado em Direito e trabalhara como
advogada e como tradutora no Quirguistão, seu país natal.
Mas depois dos conflitos armados e do Golpe de Estado de
2010, muita coisa mudou e a descriminação de que a sua etnia, os Uzbeques, era
alvo fez colocar muitos cenários em cima da mesa.
Em dezembro desse ano, um compatriota que ela não conhecia
regressou ao seu país, depois de alguns anos a trabalhar no setor agrícola em
Portugal. A mãe dele convenceu-o que estava na hora de se casar e contactaram a
família da Mukhae. O casamento aconteceu alguns dias depois e no início de 2011 ele
voltou para Portugal, desta vez empregando-se como motorista. Em abril, a Mukhae, já
grávida, juntou-se a ele e iniciou o processo de legalização em terras lusas.
Viviam em Gaia numa casa muito rude e a Segurança Social havia iniciado um
processo para atribuição de habitação social.
Entretanto, o marido foi para a Alemanha dedicar-se ao
negócio de exportação de carros usados para o Quirguistão. Ela ficou sozinha,
grávida e mal-falante do Português. Em outubro de 2011, nasceu a bebé e, por
intermédio da assistência social do hospital, ela foi enviada para o Centro
Comunitário S. Cirilo. Esta estrutura, no Porto, dedica-se, entre outras
atividades assistenciais, ao acolhimento temporário de imigrantes e pessoas
sem-abrigo.
Os maus-tratos e os conflitos com o marido eram já uma
evidência no jovem casamento, mas bastou o marido voltar do estrangeiro para
que ela deixasse o Centro e fosse com ele. Com a bebé ainda muito pequena, passaram
a viver num camião, de forma itinerante. Estiveram por França, Alemanha e um
período mais largo na Lituânia. Além de todos os constrangimentos de viver com
uma criança pequena num meio de transporte, a violência continuava. Ela, que
estava novamente grávida, decidiu voltar para Portugal, onde nasceu o segundo
filho, um menino.
Mais uma vez, foi encaminhada para o S. Cirilo. Mais uma vez,
o marido apareceu a prometer mundos e fundos e a tirou de lá, alugando um
quarto para os quatro. A violência doméstica levou os vizinhos a fazerem queixa
dele, tendo sido levado a julgamento.
O pesadelo, porém, só terminou quando foram ao Quirguistão
tratar do divórcio. Ele não queria aceitar a separação, mas como a Mukhae tinha
trabalhado no tribunal conseguiu mexer os cordelinhos e desvincular-se
oficialmente daquele casamento.
Entretanto, a mãe e a irmã dela estavam numa situação muito
delicada, vítimas de descriminação étnica. A irmã, que é enfermeira, não
conseguia trabalhar no seu país e fora apanhada por uma rede que lhe prometera
trabalho na Rússia. Porém, quando chegou àquele país, retiraram-lhe o passaporte e
enviaram-na com outras pessoas para a Turquia, junto à fronteira com a Síria. O
objetivo era entrar na guerra síria, tratando dos feridos do ISIS. A propaganda
religiosa conseguira recrutar muita gente voluntariamente, mas ela queria
escapar a todo o custo e não conseguia. Em pânico, a Mukhae pediu ajuda a um tio
advogado que vivia na Rússia e ele conseguiu ir à Turquia resgatar a sobrinha,
que se encontrava a viver num restaurante quando foi salva.
Estava já no Quirguistão quando a Mukhae foi tratar do divórcio. Se
ficasse no país, novamente cairia noutra malha. Decidiram pedir asilo em
Portugal. Graças a um golpe de sorte e a um suborno que lhes levou
tudo quanto possuíam, conseguiram sair do país. É que as mulheres não estão
autorizadas a viajar sozinhas.
A irmã e a mãe viajaram primeiro: de avião até Madrid,
depois da escala em Istambul, e de Espanha para Portugal viajaram com o apoio
de uma amiga da Mukhae. Ela decidiu ir de camião com as crianças até Istambul. Dali
apanhou avião para Madrid. O dinheiro estava contado. As malas eram muitas
porque aquela era uma viagem sem previsão de regresso. Em Madrid, sozinha, com
duas crianças pequenas e um monte de malas, viu-se obrigada a apanhar um táxi
até à estação de comboios. Havia comprado os bilhetes online. Mas, com as
necessidades fisiológicas das crianças e toda a logística associada à viagem,
acabou por perder o comboio… e não tinha dinheiro que chegasse para outro
bilhete. Não conseguia aceder à conta bancária portuguesa onde tinha o dinheiro
que ia recebendo do abono familiar… o dinheiro não chegava para ficar num
hotel…
Entretanto, acabou a aula de natação e não consegui ouvir o
fim da história. Não é difícil imaginar.
Sei que isso se passou há um ano e ela conseguiu chegar em
segurança com as crianças e as malas. Ficaram uma vez mais a viver no S.
Cirilo, desta vez com a mãe e a irmã, que estão a tentar ficar no nosso país,
tendo pedido asilo político.
A Mukhae está em situação legal, assim como as crianças, e no verão passado conseguiu
autonomizar-se, passando a residir com os dois filhos num apartamento. As
crianças têm escola e têm apoio para as necessidades básicas.
Já consegui localizar no mapa o Quirguistão, mas estou ainda longe de conhecer a realidade das pessoas que têm de fugir à repressão e a sistemas injustos.
Já consegui localizar no mapa o Quirguistão, mas estou ainda longe de conhecer a realidade das pessoas que têm de fugir à repressão e a sistemas injustos.
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