
Enquanto esperamos pelas nossas filhas que estão na aula de
natação, ela vai-me desfiando a sua história. Um olho em mim e o outro no mais
novo, pelo que a conversa foi interrompida várias vezes enquanto a Mukhae corria
atrás dele.
Portugal era talvez o último destino em que a Mukhae se imaginava
a viver. Com 27 anos de idade, tinha-se formado em Direito e trabalhara como
advogada e como tradutora no Quirguistão, seu país natal.
Mas depois dos conflitos armados e do Golpe de Estado de
2010, muita coisa mudou e a descriminação de que a sua etnia, os Uzbeques, era
alvo fez colocar muitos cenários em cima da mesa.
Em dezembro desse ano, um compatriota que ela não conhecia
regressou ao seu país, depois de alguns anos a trabalhar no setor agrícola em
Portugal. A mãe dele convenceu-o que estava na hora de se casar e contactaram a
família da Mukhae. O casamento aconteceu alguns dias depois e no início de 2011 ele
voltou para Portugal, desta vez empregando-se como motorista. Em abril, a Mukhae, já
grávida, juntou-se a ele e iniciou o processo de legalização em terras lusas.
Viviam em Gaia numa casa muito rude e a Segurança Social havia iniciado um
processo para atribuição de habitação social.
Entretanto, o marido foi para a Alemanha dedicar-se ao
negócio de exportação de carros usados para o Quirguistão. Ela ficou sozinha,
grávida e mal-falante do Português. Em outubro de 2011, nasceu a bebé e, por
intermédio da assistência social do hospital, ela foi enviada para o Centro
Comunitário S. Cirilo. Esta estrutura, no Porto, dedica-se, entre outras
atividades assistenciais, ao acolhimento temporário de imigrantes e pessoas
sem-abrigo.
Os maus-tratos e os conflitos com o marido eram já uma
evidência no jovem casamento, mas bastou o marido voltar do estrangeiro para
que ela deixasse o Centro e fosse com ele. Com a bebé ainda muito pequena, passaram
a viver num camião, de forma itinerante. Estiveram por França, Alemanha e um
período mais largo na Lituânia. Além de todos os constrangimentos de viver com
uma criança pequena num meio de transporte, a violência continuava. Ela, que
estava novamente grávida, decidiu voltar para Portugal, onde nasceu o segundo
filho, um menino.
Mais uma vez, foi encaminhada para o S. Cirilo. Mais uma vez,
o marido apareceu a prometer mundos e fundos e a tirou de lá, alugando um
quarto para os quatro. A violência doméstica levou os vizinhos a fazerem queixa
dele, tendo sido levado a julgamento.
O pesadelo, porém, só terminou quando foram ao Quirguistão
tratar do divórcio. Ele não queria aceitar a separação, mas como a Mukhae tinha
trabalhado no tribunal conseguiu mexer os cordelinhos e desvincular-se
oficialmente daquele casamento.
Entretanto, a mãe e a irmã dela estavam numa situação muito
delicada, vítimas de descriminação étnica. A irmã, que é enfermeira, não
conseguia trabalhar no seu país e fora apanhada por uma rede que lhe prometera
trabalho na Rússia. Porém, quando chegou àquele país, retiraram-lhe o passaporte e
enviaram-na com outras pessoas para a Turquia, junto à fronteira com a Síria. O
objetivo era entrar na guerra síria, tratando dos feridos do ISIS. A propaganda
religiosa conseguira recrutar muita gente voluntariamente, mas ela queria
escapar a todo o custo e não conseguia. Em pânico, a Mukhae pediu ajuda a um tio
advogado que vivia na Rússia e ele conseguiu ir à Turquia resgatar a sobrinha,
que se encontrava a viver num restaurante quando foi salva.
Estava já no Quirguistão quando a Mukhae foi tratar do divórcio. Se
ficasse no país, novamente cairia noutra malha. Decidiram pedir asilo em
Portugal. Graças a um golpe de sorte e a um suborno que lhes levou
tudo quanto possuíam, conseguiram sair do país. É que as mulheres não estão
autorizadas a viajar sozinhas.
A irmã e a mãe viajaram primeiro: de avião até Madrid,
depois da escala em Istambul, e de Espanha para Portugal viajaram com o apoio
de uma amiga da Mukhae. Ela decidiu ir de camião com as crianças até Istambul. Dali
apanhou avião para Madrid. O dinheiro estava contado. As malas eram muitas
porque aquela era uma viagem sem previsão de regresso. Em Madrid, sozinha, com
duas crianças pequenas e um monte de malas, viu-se obrigada a apanhar um táxi
até à estação de comboios. Havia comprado os bilhetes online. Mas, com as
necessidades fisiológicas das crianças e toda a logística associada à viagem,
acabou por perder o comboio… e não tinha dinheiro que chegasse para outro
bilhete. Não conseguia aceder à conta bancária portuguesa onde tinha o dinheiro
que ia recebendo do abono familiar… o dinheiro não chegava para ficar num
hotel…
Entretanto, acabou a aula de natação e não consegui ouvir o
fim da história. Não é difícil imaginar.
Sei que isso se passou há um ano e ela conseguiu chegar em
segurança com as crianças e as malas. Ficaram uma vez mais a viver no S.
Cirilo, desta vez com a mãe e a irmã, que estão a tentar ficar no nosso país,
tendo pedido asilo político.
A Mukhae está em situação legal, assim como as crianças, e no verão passado conseguiu
autonomizar-se, passando a residir com os dois filhos num apartamento. As
crianças têm escola e têm apoio para as necessidades básicas.
Já consegui localizar no mapa o Quirguistão, mas estou ainda longe de conhecer a realidade das pessoas que têm de fugir à repressão e a sistemas injustos.