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A equipa da Torre di Canicarao |
A SUL
Uns saem das suas casas a fugir da guerra, da perseguição,
da miséria, da tortura, da fome e conseguem sobreviver; outros saem das suas
casas para ir ter com estas pessoas migrantes e refugiadas e mostrar-lhes que
se importam com elas, com as suas vidas, e que há um caminho a percorrer
juntos. Recentemente, estive na Sicília numa missão internacional de
voluntariado com homens refugiados.
Buongiorno! Tutto a posto?
As histórias que vos vou contar passaram-se na província de
Ragusa. Mais concretamente, num Centro de Acolhimento a Refugiados, que em
Itália é chamado de Sistema de Proteção para Requerentes de Asilo e Refugiados
(SPRAR), no meio do campo, a uns 4kms da cidade de Comiso, na antiga Torre di Canicarao. Estive a trabalhar
como voluntária no projeto At The Frontiers (ATF) em setembro passado, durante
três semanas. Vou falar-vos de pessoas refugiadas que conheci e optei por
dar-lhes aqui nomes fictícios por uma questão de proteção da sua integridade.
Buongiorno!
Buongiorno! Come stai? Bene? Bene! E tu? Si, tutto a posto!
As nossas manhãs na
Torre di Canicarao
começavam assim, em italiano, na língua da terra onde estávamos, embora ao
longo do dia, para nos compreendermos melhor, fossemos falando vários idiomas.
Cada dia começava com apertos de mão sem pressa, aliás, à medida que nos íamos
conhecendo, cada vez mais demorados à boa maneira africana. Guiné-Conacri,
Síria, Somália, Nigéria, Gâmbia, Egipto, Senegal, Marrocos, Burkina Faso,
Guiné-Bissau, Chade. 36 homens, a maioria entre os 18 e os 25 anos de idade,
sobreviventes à travessia do Canal da Sicília, até ao porto de Pozzalo, a 40
kms de Ragusa. Itália. Seis profissionais e assistentes sociais italianos da
Fondazione San Giovanni Battista, uma entidade responsável por vários centros
de acolhimento em Ragusa. Portugal e Espanha. Três elementos da equipa
internacional de voluntários ATF – o Pedro, a Begoña e eu.
Passávamos os dias todos juntos numa casa no meio do campo,
na envolvente semi-árida da cidade de Comiso, rodeada de colinas em tons ocre
com casas de pedra, rebanhos, oliveiras e catos que se chamam figueiras da
índia.
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Equipa At The Frontiers, o 4º turno. Verão 2016. |
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Equipa ATF em Noto, Itália. |
At The Frontiers, o 4º
turno
No final de cada dia, nós, os três voluntários de Canicarao,
regressávamos à cidade de Ragusa, à casa cedida pelos jesuítas para o projeto
ATF. Chegávamos nós e chegavam os outros voluntários que estavam também a
trabalhar por pequenas equipas noutros centros de acolhimento da Fondazioni San
Giovanni Battista. Embora a maior parte dos centros desta fundação acolha
homens, existem ainda um centro para mulheres e outro para famílias. Ao todo, éramos
14 voluntários naquele que foi o 4º turno do projeto ATF no verão 2016.
Entre tarefas domésticas e o jantar, íamos conversando sobre
o dia, partilhando novidades e preocupações. Todos à mesa éramos catorze.
Julien, Helène, Teresa, Maria, Elena, Lucía, Begoña, Hanna, Flavio, Sophia,
Cristina, Pedro, a Madalena e eu. Todos também de países diferentes. França,
Espanha, Alemanha, Itália, Inglaterra e Portugal. Em comum, temos o facto de
termos dado o passo de sermos parte da resposta no apoio às pessoas migrantes e
refugiadas.
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Apanha da Alfarroba |
260 quilos de
Alfarroba
Estamos a sul, na Sicília, e os dias de setembro são quentes
e por isso pesam. Mas, mais do que o clima, pesa o tempo. Pesa o tempo da longa
espera pela proteção internacional que cada um destes homens enfrenta. Aqui não
é fácil estar-se motivado.
Diferentes culturas juntas numa só casa. Ainda não estive em
nenhum destes países, mas conheci cada um deles. Importo-me com cada um dos
rapazes, com as suas vidas e quero que cada um possa construir uma vida melhor.
Alguns deles conseguiram trabalhos esporádicos ou temporários, por exemplo de
serralharia, a aspirar carros numa oficina de mecânica ou na apanha da fruta.
Um deles foi treinador de futebol de iniciados e agora está responsável pelo
campo de futebol de Comiso.
Andiamo al jardino a
fare una ativitá veramente importante!
Oggi
prendiamo Carruba insieme!
O meu italiano é muito limitado, mas sei que quando dizia frases como estas com
entusiasmo, elas tinham impacto e até faziam rir. Precisamos todos de rir.
Vamos fazer uma atividade diferente: apanhar alfarroba no terreno que circunda
a casa. No caminho até ao jardim misturamos palavras em alguns idiomas, como já
se torna habitual. Italiano, inglês, árabe, francês, fular, algumas das línguas
que se falam ali por casa. Por vezes, não é fácil expressarmo-nos e
conseguirmos passar a mensagem. O Tarik (Marrocos) e o Mahamat (Chade) ajudam e
fazem muitas vezes a tradução para árabe. O Pedro avança com uns sacos de
plástico XXL pretos. O Mahamat, o Tarik, o Horus (Egipto), o Omar (Síria), o
Abdal Salam (Somália), o Jonas e o David (Gâmbia), e o Moussa (Senegal)
acompanham-no.
O dia está nublado. Não podia ser melhor para apanharmos a carruba, que é como se diz alfarroba em
italiano. Os rapazes arranjaram umas varas para agitar os ramos e fizeram cair
as vagens na terra. Resultou, mas o Omar quis subir às alfarrobeiras para
tornar mais rápido o processo. Parecia que choviam alfarrobas! Algumas
caiam-nos em cima e riamos uns com os outros. A atividade levou-nos o dia
inteiro. Apanhámos 260 quilos.
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Carruba Pranzo Party |
Carruba Pranzo Party
Antes, o Pedro, a Begoña e eu acordámos com os profissionais
do centro e com os rapazes que iriamos vender a colheita e repartir o dinheiro
por quem tivesse trabalhado. Assim foi. Recebemos 65 euros. Reunimos todos os
envolvidos e perguntámos o que queriam fazer com este valor, que era deles.
Responderam que era para nós decidirmos. Insistimos e devolvemos a mesma
pergunta. Depois de discutirem algumas ideias, decidiram que 15 euros seriam
para uma pequena festa para todos na Torre di Canicarao e o restante seria
dividido pelos que trabalharam. Para nós, esta iniciativa de eles quererem
investir parte do dinheiro ganho para fazer uma festa para todos, indicou-nos
claramente que o ambiente que cultivam entre eles é construtivo. Nesta ação e
nesta atitude, explicaram-nos como a paz se pode construir em contextos
difíceis. Juntámos mais um tanto e fomos ao supermercado comprar sumos,
salgadinhos e gelados. Fizemos um almoço com todos e diferente do habitual,
mais animado. Chamámos-lhe a
Carruba
Pranzo Party.
À volta de uma mesa muito comprida reuníamo-nos dia após
dia, como fazemos com os nossos amigos ou com a nossa família. Igual. Sabíamos
que alguns deles são muçulmanos e à uma hora da tarde rezam juntos, por isso
esperávamos mais uns minutos por eles para almoçarmos todos. Dia após dia,
fomo-nos conhecendo, trabalhando em conjunto e os dias foram ganhando sentido.
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O Jardim das Plantas Aromáticas |
É por isso que
estamos aqui
Depois da apanha da Alfarroba e da Carruba Pranzo Party, propusemos aos rapazes fazermos outras
atividades. Arranjarmos o jardim das plantas aromáticas foi uma delas. O Jonas, que adora mecânica e agricultura,
guiou-nos com a sua experiência e entusiasmo. Plantámos
manjericão, hortelã, sálvia e orégãos. Semeámos alfaces e rabanetes. No jardim,
já tinham salsa, alecrim, alfazema, cebolas. A boa disposição do Jonas
aumentava à medida que remexia a terra e nos explicava como fazer. Já sabíamos
que passava noites em claro. Muitas preocupações. O jardim das plantas
aromáticas parecia outro e ele também. Dá gosto ver os resultados! O Jonas
disse-me, enquanto isso, que pede todos os dias a Deus um terreno para
cultivar. ‘Sim, vais ter’, disse-lhe eu. Depois pensei: ‘quem sou eu para lhe
dizer que sim?’. E repensei: ‘claro que sim, se ele quiser muito um pedaço de
terra, vai fazer por isso e criar mais possibilidades para que aconteça. É
possível’. Continuámos a arranjar o jardim.
A Begoña, eu e alguns deles fizemos legendas para as
plantas. Traduzimos os nomes das plantas para os quatro idiomas mais falados
ali no Centro: italiano, inglês, francês e árabe. Para as legendas ficarem mais
completas, o Pedro, o Jonas, o Tarik e o Horus foram para o jardim, fizeram os
desenhos das plantas e pintaram-nos com aguarelas. As atividades em conjunto
ajudam-nos a estar no presente. O Jonas tinha insónias todas as noites.
Contou-me que deixou a Gâmbia porque presenciou o assassinato de uma pessoa por
militares do governo. Agora está longe da família, da mãe e dos irmãos, dos amigos.
Numa outra conversa mais à frente, estávamos a dizer que a vida não é fácil.
Ele acrescentou que a deles é muito difícil. Eu imediatamente respondi que é
por isso que estamos aqui. E ficámos em silêncio.
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Comiso, na província de Ragusa. |
Tenho de ir ao
Terreno
Conversas simples do dia a dia davam ritmo à amizade que
fomos construindo. Nada de ‘conversas-inquérito’ com aquela curiosidade mórbida
em que às vezes se cai. Sabíamos que os rapazes já estavam ali há muitos meses,
pelo menos a grande maioria, e que já teriam contado muitas vezes partes das
histórias que os acompanham. O Pedro, a Begoña e eu, embora não tivéssemos
falado sobre isso, estivemos sempre alinhados: não fazíamos perguntas que
direcionassem as nossas conversas para que eles recordassem momentos de
sofrimento. O nosso foco estava neles. No aqui e no agora, na ação e neles. O
grande desafio foi estarmos com os rapazes neste tempo de espera. Lado a lado.
A nossa presença mostra que nos importamos com eles, assim como as atividades
que desenvolvemos juntos, a nossa energia, as conversas, a participação nas
aulas e os jogos.
Porém, há histórias que conheci e não me saem da memória.
Num dos dias recebemos a visita do Kévin da Guiné-Conacri, que antes de lhe ser
reconhecido o estatuto de refugiado, tinha vivido ali no centro. O Kévin foi
escravo durante 5 anos na Líbia, conseguiu fugir e chegar à Sicília. Agora
trabalha numa ONG em Ragusa como facilitador e tradutor num projeto com outros
requerentes de proteção internacional. Outro dos rapazes saiu do seu país, a
Gâmbia, porque presenciou um assassinato praticado pelos militares e temeu pela
vida. Já o Omar, que fugiu com os irmãos da Síria, contava-nos que na cidade
dele, As-Suwayda, existem diferentes grupos terroristas que atacam as pessoas e
instalam um clima de violência constante, diário. O Omar quer trabalhar e
ganhar dinheiro para poder ajudar os pais que lá ficaram. São tantas as
histórias de superação quantas as pessoas que ali chegaram.
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Caminho entre Comiso e a Torre di Canicarao. |
Antes de partir para Ragusa, lembro-me de ter dito a um
amigo meu que tinha de ir ao terreno. Não aguentava mais. Tinha que agir e
conhecer de perto esta realidade que também me diz respeito. Não propriamente
para conhecer as histórias, mas as pessoas. Para olhar para elas, estar ao lado
delas e para que, pelo menos algumas, percebessem que me importo, que nós
europeus nos importamos. Mas, acima de tudo, para eu compreender melhor o que
posso fazer por elas na minha cidade e no meu país, agora que regressei.
Nestes dias aprendi a dar um ‘passou bem’ à maneira
africana. Mão na mão. O olhar e o aperto de mão são dados sem pressa. No final
do ‘passou bem’ quando largamos as mãos, damos um estalinho com os dedos.
Guardo na memória, e no coração, cada um deles, a minha equipa At The Frontiers
e a enorme solidariedade do povo italiano, todos incansáveis.