sexta-feira, 25 de novembro de 2016

História de um Colete, por Sofia Mexia Alves

Partilhamos aqui a história de um colete, da autoria da Sofia Mexia Alves:

Diário de Bordo
Lesbos, 22 de Agosto de 2016
(…)
estava entusiasmada quando cheguei ao campo de Kara Tepe, tinha preparado uma sessão sobre liderança para o Youth Group. Ia contente e de sorriso rasgado.
Chego à entrada do campo e vejo o Salam e o Ahmed de mochila às costas, com o resto da família. O Salam vê-me e chama-me, com um olhar desamparado diz-me que se vão embora, vão para Atenas.
Fico também eu desamparada. Pela incerteza do futuro.
O Salam, tão querido, estava em todos os Creative Minds, sempre pronto a participar, conversar, ajudar. O Ahmed é aquele pestinha maravilhoso, irrequieto, sempre a testar os nossos limites… impossível não gostar dele.
Demos abraços apertados, muitos beijinhos, dissemos “i love you” imensas vezes.
O olhar do Salam continuava desamparado.
E eu tinha de seguir e ir para o Youth Group.
Pelo caminho ia engolindo as lágrimas.
Dias depois, a Inês Viterbo (voluntária na Linha da Frente, em Atenas) envia-nos uma fotografia e uma mensagem:
“(…) Vieram ter comigo a correr hoje, pouco depois de eu ter chegado ao campo de Eleonas. Reconheceram o meu colete.
Chegaram cá há quatro dias, vindos de Lesbos.
Senti muito, através deles, uma enorme ternura por cada um de vocês. Tive, sobretudo, a percepção de que se sentiram muito amados e protegidos aí. Senti que o Salam viu neste mesmo colete um sinal de esperança, um lugar comum de Amor.”
Não importa se é a Inês, a Sofia ou o Tiago quem o veste.
Vestir este colete é assumir um compromisso de serviço, de humanidade.
Vestir este colete é ser-se humilde, é tomarmos consciência da nossa pequenez. E do nosso poder.
É sermos tomados por esta missão de amor.

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Plataforma de Apoio aos Refugiados

Texto e imagem: Sofia Mexia Alves, in: https://escolhadesofia.wordpress.com/2016/11/23/historia-de-um-colete/

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

A equipa da Torre di Canicarao


A SUL

Uns saem das suas casas a fugir da guerra, da perseguição, da miséria, da tortura, da fome e conseguem sobreviver; outros saem das suas casas para ir ter com estas pessoas migrantes e refugiadas e mostrar-lhes que se importam com elas, com as suas vidas, e que há um caminho a percorrer juntos. Recentemente, estive na Sicília numa missão internacional de voluntariado com homens refugiados.


Buongiorno! Tutto a posto?

As histórias que vos vou contar passaram-se na província de Ragusa. Mais concretamente, num Centro de Acolhimento a Refugiados, que em Itália é chamado de Sistema de Proteção para Requerentes de Asilo e Refugiados (SPRAR), no meio do campo, a uns 4kms da cidade de Comiso, na antiga Torre di Canicarao. Estive a trabalhar como voluntária no projeto At The Frontiers (ATF) em setembro passado, durante três semanas. Vou falar-vos de pessoas refugiadas que conheci e optei por dar-lhes aqui nomes fictícios por uma questão de proteção da sua integridade.

Buongiorno! Buongiorno! Come stai? Bene? Bene! E tu? Si, tutto a posto![1] As nossas manhãs na Torre di Canicarao começavam assim, em italiano, na língua da terra onde estávamos, embora ao longo do dia, para nos compreendermos melhor, fossemos falando vários idiomas. Cada dia começava com apertos de mão sem pressa, aliás, à medida que nos íamos conhecendo, cada vez mais demorados à boa maneira africana. Guiné-Conacri, Síria, Somália, Nigéria, Gâmbia, Egipto, Senegal, Marrocos, Burkina Faso, Guiné-Bissau, Chade. 36 homens, a maioria entre os 18 e os 25 anos de idade, sobreviventes à travessia do Canal da Sicília, até ao porto de Pozzalo, a 40 kms de Ragusa. Itália. Seis profissionais e assistentes sociais italianos da Fondazione San Giovanni Battista, uma entidade responsável por vários centros de acolhimento em Ragusa. Portugal e Espanha. Três elementos da equipa internacional de voluntários ATF – o Pedro, a Begoña e eu.

Passávamos os dias todos juntos numa casa no meio do campo, na envolvente semi-árida da cidade de Comiso, rodeada de colinas em tons ocre com casas de pedra, rebanhos, oliveiras e catos que se chamam figueiras da índia.

Equipa At The Frontiers, o 4º turno. Verão 2016.

Equipa ATF em Noto, Itália.

At The Frontiers, o 4º turno

No final de cada dia, nós, os três voluntários de Canicarao, regressávamos à cidade de Ragusa, à casa cedida pelos jesuítas para o projeto ATF. Chegávamos nós e chegavam os outros voluntários que estavam também a trabalhar por pequenas equipas noutros centros de acolhimento da Fondazioni San Giovanni Battista. Embora a maior parte dos centros desta fundação acolha homens, existem ainda um centro para mulheres e outro para famílias. Ao todo, éramos 14 voluntários naquele que foi o 4º turno do projeto ATF no verão 2016.

Entre tarefas domésticas e o jantar, íamos conversando sobre o dia, partilhando novidades e preocupações. Todos à mesa éramos catorze. Julien, Helène, Teresa, Maria, Elena, Lucía, Begoña, Hanna, Flavio, Sophia, Cristina, Pedro, a Madalena e eu. Todos também de países diferentes. França, Espanha, Alemanha, Itália, Inglaterra e Portugal. Em comum, temos o facto de termos dado o passo de sermos parte da resposta no apoio às pessoas migrantes e refugiadas.


Apanha da Alfarroba


260 quilos de Alfarroba

Estamos a sul, na Sicília, e os dias de setembro são quentes e por isso pesam. Mas, mais do que o clima, pesa o tempo. Pesa o tempo da longa espera pela proteção internacional que cada um destes homens enfrenta. Aqui não é fácil estar-se motivado.

Diferentes culturas juntas numa só casa. Ainda não estive em nenhum destes países, mas conheci cada um deles. Importo-me com cada um dos rapazes, com as suas vidas e quero que cada um possa construir uma vida melhor. Alguns deles conseguiram trabalhos esporádicos ou temporários, por exemplo de serralharia, a aspirar carros numa oficina de mecânica ou na apanha da fruta. Um deles foi treinador de futebol de iniciados e agora está responsável pelo campo de futebol de Comiso.

Andiamo al jardino a fare una ativitá veramente importante! Oggi prendiamo Carruba insieme![2] O meu italiano é muito limitado, mas sei que quando dizia frases como estas com entusiasmo, elas tinham impacto e até faziam rir. Precisamos todos de rir. Vamos fazer uma atividade diferente: apanhar alfarroba no terreno que circunda a casa. No caminho até ao jardim misturamos palavras em alguns idiomas, como já se torna habitual. Italiano, inglês, árabe, francês, fular, algumas das línguas que se falam ali por casa. Por vezes, não é fácil expressarmo-nos e conseguirmos passar a mensagem. O Tarik (Marrocos) e o Mahamat (Chade) ajudam e fazem muitas vezes a tradução para árabe. O Pedro avança com uns sacos de plástico XXL pretos. O Mahamat, o Tarik, o Horus (Egipto), o Omar (Síria), o Abdal Salam (Somália), o Jonas e o David (Gâmbia), e o Moussa (Senegal) acompanham-no.

O dia está nublado. Não podia ser melhor para apanharmos a carruba, que é como se diz alfarroba em italiano. Os rapazes arranjaram umas varas para agitar os ramos e fizeram cair as vagens na terra. Resultou, mas o Omar quis subir às alfarrobeiras para tornar mais rápido o processo. Parecia que choviam alfarrobas! Algumas caiam-nos em cima e riamos uns com os outros. A atividade levou-nos o dia inteiro. Apanhámos 260 quilos.


Carruba Pranzo Party

Carruba Pranzo Party

Antes, o Pedro, a Begoña e eu acordámos com os profissionais do centro e com os rapazes que iriamos vender a colheita e repartir o dinheiro por quem tivesse trabalhado. Assim foi. Recebemos 65 euros. Reunimos todos os envolvidos e perguntámos o que queriam fazer com este valor, que era deles. Responderam que era para nós decidirmos. Insistimos e devolvemos a mesma pergunta. Depois de discutirem algumas ideias, decidiram que 15 euros seriam para uma pequena festa para todos na Torre di Canicarao e o restante seria dividido pelos que trabalharam. Para nós, esta iniciativa de eles quererem investir parte do dinheiro ganho para fazer uma festa para todos, indicou-nos claramente que o ambiente que cultivam entre eles é construtivo. Nesta ação e nesta atitude, explicaram-nos como a paz se pode construir em contextos difíceis. Juntámos mais um tanto e fomos ao supermercado comprar sumos, salgadinhos e gelados. Fizemos um almoço com todos e diferente do habitual, mais animado. Chamámos-lhe a Carruba Pranzo Party[3].

À volta de uma mesa muito comprida reuníamo-nos dia após dia, como fazemos com os nossos amigos ou com a nossa família. Igual. Sabíamos que alguns deles são muçulmanos e à uma hora da tarde rezam juntos, por isso esperávamos mais uns minutos por eles para almoçarmos todos. Dia após dia, fomo-nos conhecendo, trabalhando em conjunto e os dias foram ganhando sentido.

O Jardim das Plantas Aromáticas


É por isso que estamos aqui

Depois da apanha da Alfarroba e da Carruba Pranzo Party, propusemos aos rapazes fazermos outras atividades. Arranjarmos o jardim das plantas aromáticas foi uma delas. O Jonas, que adora mecânica e agricultura, guiou-nos com a sua experiência e entusiasmo. Plantámos manjericão, hortelã, sálvia e orégãos. Semeámos alfaces e rabanetes. No jardim, já tinham salsa, alecrim, alfazema, cebolas. A boa disposição do Jonas aumentava à medida que remexia a terra e nos explicava como fazer. Já sabíamos que passava noites em claro. Muitas preocupações. O jardim das plantas aromáticas parecia outro e ele também. Dá gosto ver os resultados! O Jonas disse-me, enquanto isso, que pede todos os dias a Deus um terreno para cultivar. ‘Sim, vais ter’, disse-lhe eu. Depois pensei: ‘quem sou eu para lhe dizer que sim?’. E repensei: ‘claro que sim, se ele quiser muito um pedaço de terra, vai fazer por isso e criar mais possibilidades para que aconteça. É possível’. Continuámos a arranjar o jardim.

A Begoña, eu e alguns deles fizemos legendas para as plantas. Traduzimos os nomes das plantas para os quatro idiomas mais falados ali no Centro: italiano, inglês, francês e árabe. Para as legendas ficarem mais completas, o Pedro, o Jonas, o Tarik e o Horus foram para o jardim, fizeram os desenhos das plantas e pintaram-nos com aguarelas. As atividades em conjunto ajudam-nos a estar no presente. O Jonas tinha insónias todas as noites. Contou-me que deixou a Gâmbia porque presenciou o assassinato de uma pessoa por militares do governo. Agora está longe da família, da mãe e dos irmãos, dos amigos. Numa outra conversa mais à frente, estávamos a dizer que a vida não é fácil. Ele acrescentou que a deles é muito difícil. Eu imediatamente respondi que é por isso que estamos aqui. E ficámos em silêncio.

Comiso, na província de Ragusa.


Tenho de ir ao Terreno

Conversas simples do dia a dia davam ritmo à amizade que fomos construindo. Nada de ‘conversas-inquérito’ com aquela curiosidade mórbida em que às vezes se cai. Sabíamos que os rapazes já estavam ali há muitos meses, pelo menos a grande maioria, e que já teriam contado muitas vezes partes das histórias que os acompanham. O Pedro, a Begoña e eu, embora não tivéssemos falado sobre isso, estivemos sempre alinhados: não fazíamos perguntas que direcionassem as nossas conversas para que eles recordassem momentos de sofrimento. O nosso foco estava neles. No aqui e no agora, na ação e neles. O grande desafio foi estarmos com os rapazes neste tempo de espera. Lado a lado. A nossa presença mostra que nos importamos com eles, assim como as atividades que desenvolvemos juntos, a nossa energia, as conversas, a participação nas aulas e os jogos.

Porém, há histórias que conheci e não me saem da memória. Num dos dias recebemos a visita do Kévin da Guiné-Conacri, que antes de lhe ser reconhecido o estatuto de refugiado, tinha vivido ali no centro. O Kévin foi escravo durante 5 anos na Líbia, conseguiu fugir e chegar à Sicília. Agora trabalha numa ONG em Ragusa como facilitador e tradutor num projeto com outros requerentes de proteção internacional. Outro dos rapazes saiu do seu país, a Gâmbia, porque presenciou um assassinato praticado pelos militares e temeu pela vida. Já o Omar, que fugiu com os irmãos da Síria, contava-nos que na cidade dele, As-Suwayda, existem diferentes grupos terroristas que atacam as pessoas e instalam um clima de violência constante, diário. O Omar quer trabalhar e ganhar dinheiro para poder ajudar os pais que lá ficaram. São tantas as histórias de superação quantas as pessoas que ali chegaram.

Caminho entre Comiso e a Torre di Canicarao.


Antes de partir para Ragusa, lembro-me de ter dito a um amigo meu que tinha de ir ao terreno. Não aguentava mais. Tinha que agir e conhecer de perto esta realidade que também me diz respeito. Não propriamente para conhecer as histórias, mas as pessoas. Para olhar para elas, estar ao lado delas e para que, pelo menos algumas, percebessem que me importo, que nós europeus nos importamos. Mas, acima de tudo, para eu compreender melhor o que posso fazer por elas na minha cidade e no meu país, agora que regressei.

Nestes dias aprendi a dar um ‘passou bem’ à maneira africana. Mão na mão. O olhar e o aperto de mão são dados sem pressa. No final do ‘passou bem’ quando largamos as mãos, damos um estalinho com os dedos. Guardo na memória, e no coração, cada um deles, a minha equipa At The Frontiers e a enorme solidariedade do povo italiano, todos incansáveis.



[1] Bom dia! Bom dia! Comos estás? Bem? Bem! E tu? Sim, tudo bem!
[2] (Andiamo al giardino per fare un'attività veramente importante! Oggi prenderemo carruba insieme!) Vamos até ao Jardim para fazermos uma atividade realmente importante! Hoje nós vamos apanhar alfarrobas juntos!
[3] Festa Almoço da Alfarroba