segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Fogo no Mar

- Por favor, ajudem-nos, estamos a afundar!
- Quantas pessoas?
- 250! Há muitas mulheres e crianças. Ajudem-nos!
- Qual é a vossa posição?
- Ajudem-nos! Socorro!
- Por favor, mantenha a calma e diga-me qual é a vossa posição.
Perde-se a ligação, em vão um helicóptero tenta perscrutar na noite sinais da embarcação em apuros, no dia seguinte a rádio local de Lampedusa informa que pelo menos 250 pessoas perderam a vida na tentativa de alcançarem a ilha.
É desta forma desconcertante que começa o filme "Fogo no Mar", da autoria de Gianfranco Rosi, realizador que viveu na ilha durante mais de um ano captando as imagens que estiveram na base deste documentário. No final, não conseguiu abandonar Lampedusa e, contrariamente aos seus planos iniciais, não conseguiu fazer a edição do filme, por não estar preparado para voltar a reviver as emoções por trás das imagens.
Com arte e sentido de humor, o filme leva-nos a conhecer as rotinas de quem vive na ilha, tendo como personagem principal um rapazinho de 12 anos chamado Samuele; mostra-nos os olhares de fogo de quem é resgatado do naufrágio; apresenta-nos quem presta assistência a estas pessoas.

Emerge à tona das águas límpidas de Lampedusa uma certeza: quem enfrenta a morte daquela maneira só pode estar a fugir a algo ainda pior. Guerras, tráfico, fome, sede, exploração, miséria.
Assistimos à exploração submarina de um mergulhador local, talvez para recolher objetos dos náufragos, quem sabe para construir um museu ou para fazer um cemitério de sonhos. Aqueles mares, os nossos mares, estão salgados pelo desespero e obscurecidos pela falta de ação concertada.
Assistindo aos vários procedimentos legais que os migrantes são sujeitos, ouvimos os comentários dos guardas que frisam o cheiro a gasóleo dos náufragos. No final do filme percebemos porquê: os barcos em que navegam têm de ser reabastecidos várias vezes durante o trajeto e nesse processo muito combustível cai ao chão e junta-se à água que já cobre o piso. As pessoas ficam molhadas com essa mistura e muitas delas sofrem queimaduras graves. Mais chocante do que isso foi vermos o resgate de um barco em cujo porão cerca de 50 pessoas morreram ou estavam perto disso devido ao calor e consequente falta de oxigénio. Cada uma delas pagara 800 dólares americanos por aquela passagem...
É um filme com pormenores de ternura, retratando o dia a dia de Samuele, com as diabruras próprias da idade. Mas é sobretudo um abanão. Um confronto com um mundo semeado de desigualdades que nem barreiras naturais como o mar conseguem estancar.
Só no ano de 2013, 14.753 imigrantes -três vezes mais do que a população da ilha - desembarcaram em Lampedusa, causando um impacto tremendo na dinâmica social local. Depois do terrível naufrágio de 3 de outubro de 2013, onde 366 pessoas perderam a vida, desencadeou-se a operação Mare Nostrum, que tem permitido salvar a vida a muitos migrantes e refugiados: só num ano foram resgatadas do mar 60.000 pessoas.
Ver este filme é permitir que a realidade não nos seja indiferente, é transformar os números em pessoas, o choque em apelo à ação!
Imagem: Amnistia Internacional