segunda-feira, 25 de julho de 2016

Amanhã partem para Portugal...

O sol é tórrido e o local de encontro é o quintal, onde está instalada uma mesa comprida. Hoje, tive novos alunos: a família Ahmed chegou há menos de um mês a Portugal e veio visitar pela primeira vez os Ateka, ficando para a aula de Português.
Com a preciosa ajuda de uma intérprete, contaram-me as histórias por detrás da sua fuga e relataram-me a situação de completa vulnerabilidade em que vivem as pessoas na Síria.

Amanhã partem para Portugal
De vermos tantas imagens na televisão, não nos é difícil imaginar o que será atravessar a faixa de mar que divide a Turquia das ilhas gregas. Podemos visualizar um barco preto, repleto de gente, avariado, à deriva, a dar à costa… Foi numa dessas frágeis embarcações que os Ateka arriscaram a vida e empenharam tudo quanto lhes sobrou. As crianças, de 9, 5 e 4 anos choraram e gritaram o tempo, pensando que iam morrer. Os adultos chegaram a pensar que nunca atingiriam solo seguro, não por se afundarem, mas por não conseguirem respirar, de tal maneira estavam apertados contra outros corpos. A bordo iam os avós das crianças, o filho e a nora, pais dos meninos de 9 e de 4 anos, e outra filha e respetivo filho de 5 anos, que chorava ainda mais do que os outros por não saber do pai, mas quem lhe podia dizer onde ele estava se o raptaram na Síria em 2012 e ninguém sabe se está vivo ou morto?
Para além desse familiar, deixaram para trás, na Turquia, dois membros da família, um filho não quis partir por ter a mulher grávida e por isso estar incapaz de se lançar naquela travessia, o outro também preferiu ficar por motivos de saúde.
Tinham vivido juntos três anos na Turquia, onde haviam conseguido casa e trabalho, mas a situação era extremamente precária, pois recebiam tarde e mal e passavam fome. Mas o que os fez tomar a decisão de deixar esse país foi mesmo o futuro que queriam oferecer às três crianças, não podendo permanecer num país onde aumentavam os relatos de raptos, violações e escravatura infantil.
No barquinho de borracha, apertados e enjoados, pensavam na Alemanha, onde o avô tinha irmãos e sobrinhos. Sabiam que se conseguissem lá chegar, teriam uma casa para viver e lojas onde trabalhar. Mas quando deram à costa grega as fronteiras estavam fechadas. Ficaram um mês no campo de refugiados e quando lhes foi dada a informação de que podiam optar pelo repatriamento noutro país europeu não hesitaram e aceitaram. Definitivamente, não queriam voltar para a Turquia. Ao fim de quatro meses, chegou o veredito:
- Amanhã partem para Portugal.
Pouco sabiam deste país, mas só o facto de ser na Europa representou uma segurança. Chegaram em maio e estão ainda a adaptar-se e a aprender a língua. Custa-lhes estar longe de alguns elementos da família e frequentemente recebem notícias dramáticas, como a da morte de um sobrinho de 32 anos. Mas garantem: “não estamos aqui a passar férias, viemos porque é impossível viver no nosso país. Estamos extremamente gratos aos portugueses e esperamos um dia retribuir tudo o que têm feito por nós!”

Já só pedem a pílula
Os Ahmed quiseram também contar-me a sua história.
Fugiram da Síria há cinco meses atrás. Chegaram a um ponto em que já não tinham casa e a situação era insustentável, mas depararam-se com um grande dilema: fugir com 4 dos 5 filhos, sabendo que deixariam para trás a filha mais velha, com 22 anos, e um bebé e um marido estropiado a seu cargo ou permanecer para a ajudar?
Os outros filhos já não podiam continuar a estudar. O mais novo, de 9 anos, deixou de frequentar a escola quando uma bomba explodiu no estabelecimento escolar e na fuga  ele partiu os dentes da frente. Os relatos de violações sucediam-se. “Todos os dias assistíamos ao sofrimento de saber que raparigas eram violadas à frente dos pais e ninguém conseguia fazer nada. As raparigas já só pediam a pílula, já não queriam ajuda nenhuma, só queriam a pílula para evitar que viessem crianças ao mundo naquelas circunstâncias”, conta-me uma das filhas do casal Ahmed.
Por esse motivo, quando pensaram em fugir, não equacionaram o Líbano, por ouvirem relatos de abusos e violações de raparigas.

Encharcados e com os sapatos rotos 
Foi muito difícil tomar a decisão, mas os pais decidiram tentar salvar os outros filhos e planearam a viagem, recorrendo a um passador, numa altura em que não se podia circular em veículos motorizados.
A primeira tentativa foi malsucedida, pois foram apanhados pela polícia e tiveram de voltar para trás. Tentaram novamente e contactaram outro passador que os informou que teriam pela frente uma caminhada de meia hora. Contudo, saíram da Síria à meia-noite e só chegaram à Turquia às seis da manhã, completamente exaustos. Mal preparados, viram os sapatos a rasgar-se e tiveram de caminhar quase descalços. O chefe do grupo proibiu-os de ligaram os telemóveis ou qualquer lanterna, para não serem detetados, e eles não conseguiam ver onde punham os pés. Ora, era inverno e chovia muito e o terreno que atravessavam era matagal, pelo que ficaram rapidamente encharcados. O menino de nove caiu na água a atravessar um ribeiro e foi todo o caminho a tremer de frio.

Salvos numa casa de banho pública
Se estavam felizes por terem atingido a Turquia, sentiam-se sem forças e desconfortáveis nas roupas sujas e ensopadas. Não tinham casa onde ficar e, quando viram casas de banho públicas na rua, decidiram entrar para mudar de roupa. Quando saíram dos sanitários, conheceram uma família síria que vivia ali perto e os acolheu durante dez dias, o tempo suficiente para se restabelecerem e contratarem um rapaz para os ajudar a chegar à Grécia.

Mar agitado
Demoraram quatro horas no mar agitado de fevereiro, mas conseguiram sair da Turquia e alcançar a Grécia com segurança. Encontraram um campo de refugiados, onde se instalaram e, no dia seguinte, foram abordados pelo responsável do campo, que lhes perguntou se queriam sair da Grécia imediatamente ou permanecer. Tudo o que queriam era ir para qualquer local onde tivessem um teto e pudessem descansar. Inscreveram-se no programa de repatriamento e ficaram à espera quatro meses até virem para Portugal. Mentalizaram-se que iam mudar de vida e que deixavam definitivamente a vida na Síria para trás.

À luz das velas
Dos quatro filhos que acompanharam os pais, as raparigas são as mais velhas, com 20 e 18 anos, e os rapazes têm 16 e 9 anos. Elas estão muito motivadas para aprenderem português e se ambientarem, pois garantem que sempre foram ótimas alunas e querem muito ir para a universidade, uma quer estudar Farmácia e a outra Medicina. Para terminarem os estudos secundários no seu país, tiveram de estudar muitas vezes à luz das velas, com as falhas de eletricidade constantes. Estão habituadas a lutar e dizem que não vão desistir dos seus sonhos. Uma delas relata: “a partir dos 12 anos não soube mais o que era a alegria da infância, só via a polícia a matar, não podia sair de casa por causa dos bombardeamentos… Nunca há nenhuma festa ou reunião familiar onde as pessoas estejam felizes, há sempre notícias tristes: morreu alguém, violaram alguém, feriram alguém… Queria que o meu irmão pequeno vivesse a inocência que eu não vivi.

O coração ainda está na Síria
Estão em segurança agora, mas ainda sofrem com a angústia da filha e de tantas pessoas que vivem na Síria. O marido dela só respira. Resultado de uma explosão, já não tem um braço, nem pés e outras partes do corpo estão mutiladas. A filha mais velha não conseguiu deixar o marido sozinho, apesar de os pais terem insistido muito para que fugisse também.
Ela ainda estudava na faculdade e, sem trabalho nem rendimentos, passa fome e mal consegue alimentar a filha bebé. Todos sofrem muito por saberem que ela está naquela situação. A preocupação maior, ainda assim, é com o bebé, que teve uma febre alta e, por não ter acesso a médicos nem medicamentos e por falta de alimentação conveniente, deixou de conseguir mexer os pés.
[Nesta fase do relato, todos os presentes, Ateka e Ahmed, choravam. A intérprete, de tal maneira se emocionou também, que me passava mais informação com os seus gestos solidários do que com as palavras. E eu tentei tocar aquela dor com algum sedativo, mas não me vinha uma única palavra à boca. Fiquei apenas a partilhar a minha consternação com eles, de lenço na mão.]
A irmã vendeu tudo para ter algum dinheiro para conseguir viver, nomeadamente o carro, mas metade do dinheiro teve de se destinar a tratamentos de saúde dele. A situação é extremamente preocupante e as notícias muitas vezes atrasam-se devido a falhas de eletricidade e rede de telemóvel.

Tragédias diárias que não lemos nos jornais
“Há uma aldeia onde desde há dois anos não há comida, as pessoas só tem ossos, parecem mortos. Não precisam de matá-los, já estão a morrer sozinhos.”
“Há locais onde as pessoas comem gatos e ratos e ervas, tudo o que encontram no chão eles comem. Se chove, bebem água da terra porque não há água. Toda a gente tem anemias e muitas outras doenças graves por falta de higiene e alimentação.”
“Morreram muitas crianças num mesmo dia no inverno, por causa da neve, as pessoas não tinham casa e morriam no campo onde se refugiaram.”
Foi disto que fugiram uma e outra família. Sabem que na Europa há preocupação crescente com os atentados terrorista e percebem que o facto de serem muçulmanos dificulta a sua integração, mas querem deixar uma mensagem: “não pensem que estes terrorismos têm alguma coisa a ver com os muçulmanos, quem faz isto não tem religião nenhuma porque os muçulmanos só querem viver em paz e os terroristas não dão paz a ninguém.”
Estão aqui, querem ser boas pessoas para ajudarem da melhor forma quem deles precisar, como estão a ser ajudados.
Agora o meu país é aqui em Portugal e vou esforçar-me imenso para ser uma boa pessoa e ajudar como me ajudaram a mim e vou falar sempre do que estão a fazer por mim aqui”, garante uma das jovens Ahmed.

Todos concordam e garantem que o carinho que estão a receber neste país é um bálsamo para o sofrimento que enfrentam. Esse alívio é algo que vão guardar para toda a vida.

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