O sol é tórrido e o local de encontro é o quintal, onde está
instalada uma mesa comprida. Hoje, tive novos alunos: a
família Ahmed chegou há menos de um mês a Portugal e veio visitar pela primeira
vez os Ateka, ficando para a aula de Português.
Com a preciosa ajuda de uma intérprete, contaram-me as
histórias por detrás da sua fuga e relataram-me a situação de completa
vulnerabilidade em que vivem as pessoas na Síria.
Amanhã partem para Portugal
De vermos tantas imagens na televisão, não nos é difícil
imaginar o que será atravessar a faixa de mar que divide a Turquia das ilhas
gregas. Podemos visualizar um barco preto, repleto de gente, avariado, à deriva,
a dar à costa… Foi numa dessas frágeis embarcações que os Ateka arriscaram a
vida e empenharam tudo quanto lhes sobrou. As crianças, de 9, 5 e 4 anos choraram
e gritaram o tempo, pensando que iam morrer. Os adultos chegaram a pensar que
nunca atingiriam solo seguro, não por se afundarem, mas por não conseguirem
respirar, de tal maneira estavam apertados contra outros corpos. A bordo iam os
avós das crianças, o filho e a nora, pais dos meninos de 9 e de 4 anos, e outra
filha e respetivo filho de 5 anos, que chorava ainda mais do que os outros por
não saber do pai, mas quem lhe podia dizer onde ele estava se o raptaram na
Síria em 2012 e ninguém sabe se está vivo ou morto?
Para além desse familiar, deixaram para trás, na Turquia,
dois membros da família, um filho não quis partir por ter a mulher grávida e
por isso estar incapaz de se lançar naquela travessia, o outro também preferiu
ficar por motivos de saúde.
Tinham vivido juntos três anos na Turquia, onde haviam
conseguido casa e trabalho, mas a situação era extremamente precária, pois
recebiam tarde e mal e passavam fome. Mas o que os fez tomar a decisão de deixar
esse país foi mesmo o futuro que queriam oferecer às três crianças, não podendo
permanecer num país onde aumentavam os relatos de raptos, violações e
escravatura infantil.
No barquinho de borracha, apertados e enjoados, pensavam na
Alemanha, onde o avô tinha irmãos e sobrinhos. Sabiam que se conseguissem lá
chegar, teriam uma casa para viver e lojas onde trabalhar. Mas quando deram à
costa grega as fronteiras estavam fechadas. Ficaram um mês no campo de
refugiados e quando lhes foi dada a informação de que podiam optar pelo
repatriamento noutro país europeu não hesitaram e aceitaram. Definitivamente,
não queriam voltar para a Turquia. Ao fim de quatro meses, chegou o veredito:
- Amanhã partem para Portugal.
Pouco sabiam deste país, mas só o facto de ser na Europa
representou uma segurança. Chegaram em maio e estão ainda a adaptar-se e a
aprender a língua. Custa-lhes estar longe de alguns elementos da família e
frequentemente recebem notícias dramáticas, como a da morte de um sobrinho de
32 anos. Mas garantem: “não estamos aqui
a passar férias, viemos porque é impossível viver no nosso país. Estamos
extremamente gratos aos portugueses e esperamos um dia retribuir tudo o que têm
feito por nós!”
Já só pedem a pílula
Os Ahmed quiseram também contar-me a sua história.
Fugiram da Síria há cinco meses atrás. Chegaram a um ponto
em que já não tinham casa e a situação era insustentável, mas depararam-se com
um grande dilema: fugir com 4 dos 5 filhos, sabendo que deixariam para trás a
filha mais velha, com 22 anos, e um bebé e um marido estropiado a seu cargo ou
permanecer para a ajudar?
Os outros filhos já não podiam continuar a estudar. O mais
novo, de 9 anos, deixou de frequentar a escola quando uma bomba explodiu no estabelecimento
escolar e na fuga ele partiu os dentes
da frente. Os relatos de violações sucediam-se. “Todos os dias assistíamos ao sofrimento de saber que raparigas eram
violadas à frente dos pais e ninguém conseguia fazer nada. As raparigas já só
pediam a pílula, já não queriam ajuda nenhuma, só queriam a pílula para evitar
que viessem crianças ao mundo naquelas circunstâncias”, conta-me uma das
filhas do casal Ahmed.
Por esse motivo, quando pensaram em fugir, não equacionaram
o Líbano, por ouvirem relatos de abusos e violações de raparigas.
Encharcados e com os sapatos rotos
Foi muito difícil tomar a decisão, mas os pais decidiram
tentar salvar os outros filhos e planearam a viagem, recorrendo a um passador,
numa altura em que não se podia circular em veículos motorizados.
A primeira tentativa foi malsucedida, pois foram apanhados
pela polícia e tiveram de voltar para trás. Tentaram novamente e contactaram
outro passador que os informou que teriam pela frente uma caminhada de meia
hora. Contudo, saíram da Síria à meia-noite e só chegaram à Turquia às seis da
manhã, completamente exaustos. Mal preparados, viram os sapatos a rasgar-se e
tiveram de caminhar quase descalços. O chefe do grupo proibiu-os de ligaram os
telemóveis ou qualquer lanterna, para não serem detetados, e eles não
conseguiam ver onde punham os pés. Ora, era inverno e chovia muito e o terreno
que atravessavam era matagal, pelo que ficaram rapidamente encharcados. O
menino de nove caiu na água a atravessar um ribeiro e foi todo o caminho a
tremer de frio.
Salvos numa casa de banho pública
Se estavam felizes por terem atingido a Turquia, sentiam-se
sem forças e desconfortáveis nas roupas sujas e ensopadas. Não tinham casa onde
ficar e, quando viram casas de banho públicas na rua, decidiram entrar para
mudar de roupa. Quando saíram dos sanitários, conheceram uma família síria que vivia
ali perto e os acolheu durante dez dias, o tempo suficiente para se
restabelecerem e contratarem um rapaz para os ajudar a chegar à Grécia.
Mar agitado
Demoraram quatro horas no mar agitado de fevereiro, mas
conseguiram sair da Turquia e alcançar a Grécia com segurança. Encontraram um campo
de refugiados, onde se instalaram e, no dia seguinte, foram abordados pelo
responsável do campo, que lhes perguntou se queriam sair da Grécia
imediatamente ou permanecer. Tudo o que queriam era ir para qualquer local onde
tivessem um teto e pudessem descansar. Inscreveram-se no programa de
repatriamento e ficaram à espera quatro meses até virem para Portugal. Mentalizaram-se
que iam mudar de vida e que deixavam definitivamente a vida na Síria para trás.
À luz das velas
Dos quatro filhos que acompanharam os pais, as raparigas são
as mais velhas, com 20 e 18 anos, e os rapazes têm 16 e 9 anos. Elas estão
muito motivadas para aprenderem português e se ambientarem, pois garantem que sempre
foram ótimas alunas e querem muito ir para a universidade, uma quer estudar
Farmácia e a outra Medicina. Para terminarem os estudos secundários no seu
país, tiveram de estudar muitas vezes à luz das velas, com as falhas de
eletricidade constantes. Estão habituadas a lutar e dizem que não vão desistir
dos seus sonhos. Uma delas relata: “a partir
dos 12 anos não soube mais o que era a alegria da infância, só via a polícia a
matar, não podia sair de casa por causa dos bombardeamentos… Nunca há nenhuma
festa ou reunião familiar onde as pessoas estejam felizes, há sempre notícias
tristes: morreu alguém, violaram alguém, feriram alguém… Queria que o meu irmão
pequeno vivesse a inocência que eu não vivi.”
O coração ainda está na Síria
Estão em segurança agora, mas ainda sofrem com a angústia da
filha e de tantas pessoas que vivem na Síria. O marido dela só respira.
Resultado de uma explosão, já não tem um braço, nem pés e outras partes do
corpo estão mutiladas. A filha mais velha não conseguiu deixar o marido sozinho,
apesar de os pais terem insistido muito para que fugisse também.
Ela ainda estudava na faculdade e, sem trabalho nem
rendimentos, passa fome e mal consegue alimentar a filha bebé. Todos sofrem
muito por saberem que ela está naquela situação. A preocupação maior, ainda
assim, é com o bebé, que teve uma febre alta e, por não ter acesso a médicos
nem medicamentos e por falta de alimentação conveniente, deixou de conseguir mexer
os pés.
[Nesta fase do relato, todos os presentes, Ateka e
Ahmed, choravam. A intérprete, de tal maneira se emocionou também, que me passava
mais informação com os seus gestos solidários do que com as palavras. E eu
tentei tocar aquela dor com algum sedativo, mas não me vinha uma única palavra
à boca. Fiquei apenas a partilhar a minha consternação com eles, de lenço na
mão.]
A irmã vendeu tudo para ter algum dinheiro para conseguir
viver, nomeadamente o carro, mas metade do dinheiro teve de se destinar a
tratamentos de saúde dele. A situação é extremamente preocupante e as notícias
muitas vezes atrasam-se devido a falhas de eletricidade e rede de telemóvel.
Tragédias diárias que não lemos nos jornais
“Há uma aldeia onde
desde há dois anos não há comida, as pessoas só tem ossos, parecem mortos. Não precisam
de matá-los, já estão a morrer sozinhos.”
“Há locais onde as
pessoas comem gatos e ratos e ervas, tudo o que encontram no chão eles comem. Se
chove, bebem água da terra porque não há água. Toda a gente tem anemias e
muitas outras doenças graves por falta de higiene e alimentação.”
“Morreram muitas crianças
num mesmo dia no inverno, por causa da neve, as pessoas não tinham casa e
morriam no campo onde se refugiaram.”
Foi disto que fugiram uma e outra família. Sabem que na
Europa há preocupação crescente com os atentados terrorista e percebem que o
facto de serem muçulmanos dificulta a sua integração, mas querem deixar uma
mensagem: “não pensem que estes
terrorismos têm alguma coisa a ver com os muçulmanos, quem faz isto não tem religião
nenhuma porque os muçulmanos só querem viver em paz e os terroristas não dão
paz a ninguém.”
Estão aqui, querem ser boas pessoas para ajudarem da melhor
forma quem deles precisar, como estão a ser ajudados.
“Agora o meu país é
aqui em Portugal e vou esforçar-me imenso para ser uma boa pessoa e ajudar como
me ajudaram a mim e vou falar sempre do que estão a fazer por mim aqui”,
garante uma das jovens Ahmed.
Todos concordam e garantem que o carinho que estão a receber
neste país é um bálsamo para o sofrimento que enfrentam. Esse alívio é algo que
vão guardar para toda a vida.
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